Filme com Rooney Mara propõe um novo olhar sobre a Paixão de
Cristo.
Embora seja um filme de época – uma versão intimista,
desmistificadora, da chamada “maior história de todos os tempos” –, a Maria
Madalena de Garth Davis, magnificamente interpretada por Rooney Mara, não
poderia ser mais contemporânea na sua angústia, e insatisfação.
De acordo com a tradição judaica de seu tempo, o irmão mais
velho, que substitui o velho pai, estabelece que ela deverá se casar e encher
de filhos um viúvo. Tal é o papel que a tradição lhe atribui, mas Maria
Madalena não quer isso – não aceita. É o que basta para ser considerada
endemoniada.
O tratamento de choque não resolve o caso, e Maria Madalena
torna-se inconveniente. Uma vergonha para a família. Outro irmão pede licença
para chamar o ‘rabino’. Ele entra no aposento. Ao espectador, é dado ver sua
sandália, ouvir sua voz. “Não existe demônio nesse corpo.” E não existe mesmo.
A insatisfação de Maria Madalena é de outra ordem. A simples voz desse homem,
sua calma, terão um efeito apaziguador para os tormentos da mulher. Ela vai
abandonar a família, os seus. Vai segui-lo pelas estradas poeirentas da Judeia.
Formará parte de seus apóstolos, mas, como mulher, será malvista dentro do
próprio grupo.
A reportagem é de Luiz Carlos Merten e Mariane Morisawa,
publicada por O Estado de S. Paulo, 14-03-2018.
Muita gente há de estranhar, discordar. Afinal, o ano
passado foi, para todos os efeitos, no Oscar, o de La La Land e Moonlight – Sob
a Luz do Luar. Tinham suas qualidades, mas o melhor filme daquela seleção era
outro, o Lion de Garth Davis. Um ano depois, ei-lo de volta, e dando a sua
particular interpretação sobre a Paixão de Cristo. Os incidentes são todos
aqueles que o cinema já mostrou antes, e o espectador conhece. Mas, então, por
que tudo parece tão diferente? É o filtro da história. O olhar de Maria
Madalena. Quando encontra Maria, a mãe do filho de Deus entende tudo,
rapidamente. “Você o ama”, diz. “Deve-se preparar para perdê-lo.” É uma
experiência e tanto entregar-se a essas imagens, à intensidade dessas emoções.
O Evangelho, de novo, mas, agora, da mulher.
Muitas vezes o cinema tentou decifrar o mistério do Cristo.
Importantes autores tentaram fazer leituras políticas de seu tempo – Nicholas
Ray, Pier Paolo Pasolini, Martin Scorsese, etc. Mas talvez nunca tenha existido
um Cristo como o de Garth Davis, filtrado pelo olhar de Maria Madalena.
Há nele algo dos profetas que assolam o sertão nos clássicos
do Cinema Novo, e isso já basta para que seja diferente dos demais Cristos de
Hollywood. Jeffrey Hunter (O Rei dos Reis), Max Von Sydow (A Maior História).
Você olha para eles e o tratamento é reverente. Não se assemelham em nada a
Joaquin Phoenix, o Jesus de Garth Davis. Um bando na estrada.
O Cristo pregando, salvando almas. E, ao seu redor, os
discípulos, cada um com sua agenda. Pedro espera que, nas comemorações da
Pessach, em Jerusalém, Jesus instaure o Reino e inicie a guerra contra os
romanos. Para Judas, patético, meio louquinho, o Reino trará de volta sua
mulher e a filha que morreram. Ninguém presta muita atenção no que Cristo está
dizendo, porque cada um já criou um discurso para o ‘seu’ Jesus. Só Maria
Madalena o ouve de verdade, e adverte os outros. Para ser a rocha sobre a qual
se construirá a igreja de Cristo, Pedro terá de excluí-la. Pedro é interpretado
por um negro – Chiwetel Ejiofor. Um choque de minorias, não muito frequente no
cinema correto.
Phoenix, o Cristo, é mais intenso que qualquer ator que já
tenha feito o papel. Basta uma cena para comprová-lo – a ressurreição de
Lázaro. Você já viu, o cinema já mostrou. Dessa vez Cristo exaure-se porque
tudo se resume a um sopro de vida, a dar e receber. Garth Davis expressa o
místico, o sagrado num mundo em que a religião virou ferramenta política – para
obter apoio, angariar votos, manipular consciências. Aqui, o mistério fica com
Maria Madalena, a sublime Rooney Mara. E o filme ainda esclarece. Ela não era
prostituta. Até nisso foi traída pela História.
Assista abaixo o trailer do filme
Fonte: Ihu
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