“A característica mais
significativa do capitalismo avançado é sua globalização. E essa exigência
chegou à prostituição. A globalização desativa as fronteiras para o capital e
as mercadorias. E a mercadoria sobre a qual está edificada a indústria do sexo,
os corpos das mulheres, não pode permanecer dentro dos limites do
Estado-nação”, escreve a feminista Rosa Cobo, professora de Sociologia do
Gênero na Universidade da Corunha, e coordenadora do Centro de Estudos de
Gênero e Feministas nessa universidade.
Cobo enfatiza que a indústria do
sexo “é pilotada pelas lógicas econômicas que governam o capitalismo global. Só
isto explica os enormes esforços que estão sendo feitos para que o acesso
sexual ao corpo das mulheres seja percebido como um assunto de consumo para os
varões e de livre escolha para as mulheres prostituídas. O imaginário coletivo,
resultado em muito boa medida das estruturas de poder patriarcais e
capitalistas, oferece a imagem da prostituição como um ato livre delas e um ato
de consumo deles. Dito de outra forma, as elites dominantes tentam fazer com
que a prostituição seja vista como um contrato livre entre duas partes que
estão igualmente interessadas em firmá-lo”.
Estes são fragmentos da mais
recente obra de Rosa Cobo, La prostitución en el corazón del capitalismo
(Catarata). Abaixo, reproduzimos o capítulo intitulado A indústria
internacional do sexo, publicado por InfoLibre, 22-05-2017. A tradução é do
Cepat.
Eis o texto.
A prostituição é o coração de uma
indústria internacional do sexo que inclui uma grande variedade de negócios,
desde grandes bordéis e locais de strip-tease até editoriais, desde casas de massagem
até agências de “acompanhantes”, desde filmes até revistas sobre pornografia,
sem nos esquecer das cifras do turismo sexual. A indústria do sexo não se
encerra no conjunto de negócios que fazem parte do setor da prostituição, pois
também outros muitos atores econômicos lucram com esta indústria e contribuem
para a sua manutenção. Com efeito, diversos negócios cuja função não está
diretamente vinculada com a prostituição servem a seus interesses e também se
servem desta indústria para aumentar seus lucros. Entre eles, há que destacar
principalmente hotéis, empresas de bebidas alcoólicas, jornais, farmácias,
táxis e karaokês.
O que ocorreria se as empresas
produtoras e distribuidoras de bebidas alcoólicas se negassem a abastecer os
bordéis ou se os jornais não aceitassem publicar anúncios de locais e
instalações nos quais se exerce a prostituição? O que quero destacar é que a prostituição
é o eixo de todo um setor econômico que se articula em torno dos corpos das
mulheres prostituídas. O centro da indústria do sexo são os corpos das
mulheres, que se tornaram mercadorias sobre as quais se edificou esta indústria
global. E, mais concretamente, toda esta atividade econômica se sustenta sobre
a vagina e outras partes do corpo feminino, que se tornaram o fundamento de um
negócio organizado em escala global.
Até os anos 1980, a prostituição
teve impacto econômico apenas nas contas nacionais. Sua dimensão mais relevante
foi a poderosa marca patriarcal sobre a qual, originalmente, se edificou esta
prática social. No entanto, o surgimento do capitalismo global, a partir dos
anos 1970, muda o rosto da prostituição e a torna parte fundamental da
indústria do ócio e do entretenimento. Com efeito, a partir dessa época, a
indústria do sexo foi se globalizando com a ajuda das redes informacionais, mas
também com a contribuição de redes criminosas.
Há pouco mais de três décadas, a
prostituição era um conjunto de bordéis com mulheres da localidade, que
exerciam a prostituição com encarregadas e chefes que geriam, às vezes
paternalisticamente, esses pequenos negócios.
Antes, existiam muitos “clubes de
strip” pequenos. Eram lugares íntimos, quase familiares. Agora, são cada vez
menos, e os que restam têm vivido uma transformação radical, tanto na forma
como na maneira de funcionar. Os pequenos clubes, em sua maioria, estão
desaparecendo, substituídos pelos grandes espaços de strip-tease com show-girls
e garotas se exibindo, com a mínima roupa possível. São negócios que às vezes,
inclusive, funcionam com licença de hotel... Os pequenos locais onde tantas
mulheres exerciam de maneira mais ou menos discreta uma forma de prostituição
light, porque não apenas não era obrigada a se deitar com os clientes, como
também podia ganhar muito dinheiro sem necessidade disso, são já coisa do
passado.
Nessa antiga forma de
prostituição, não existiam apenas mulheres migrantes, nem tráfico de mulheres
para a exploração sexual, nem circuitos criminosos. Em outros termos, esse
velho cânon da prostituição correspondia ao capitalismo prévio ao
neoliberalismo e, por isso mesmo, sua dimensão mais relevante era a patriarcal.
O novo cânon da prostituição só
pode ser explicado no marco de três sistemas de domínio: o patriarcal, o
neoliberal e o racial/cultural. Com efeito, varões de todas as classes sociais
acessam sexualmente aos corpos de mulheres pobres, migrantes e pertencentes a
culturas, raças e regiões do mundo que o Ocidente etnocêntrico conceitualizou
como inferiores. Este é o rosto que oferece a prostituição nos países com altas
taxas de bem-estar. Naqueles países com índices de pobreza significativos, pode
variar o componente cultural ou racial no consumo interno de sexo, mas
permanece invariável a exploração sexual das mulheres por varões de todos os
estratos sociais.
Assim “como em todo fenômeno de
prostituição, as minorias étnicas e nacionais são sobreexploradas”. Varões de
seus próprios países, de regiões próximas e de países ocidentais vêm para
comprar sexo barato de mulheres que necessitam de recursos para sobreviver.
Embora a marca de classe tenha estado presente na prostituição anterior à
globalização capitalista, nesta época de crescente mercantilização dos corpos
das mulheres, a pobreza e a extrema pobreza das mulheres, ou seja, a hierarquia
de classe, adquiriu uma dimensão que não tinha no passado.
A globalização econômica tornou
possível que a prostituição se converta em um lugar de intersecção entre o norte
e o sul, pois o sul exporta mulheres para consumo sexual dos varões do norte. E
os homens do norte viajam para países do sul para comprar sexo e exercer o
direito patriarcal que lhes autoriza a usar sexualmente as mulheres no marco da
prostituição. Esta indústria conecta o norte rico e o sul endividado. E, além
disso, contribui para criar uma nova afiliação entre os varões do norte e os do
sul. Com mais ou menos recursos, os varões ocidentais compartilham com os do
restante do mundo a possibilidade de usar sexualmente as mulheres que o
capitalismo neoliberal e os distintos patriarcados situaram nesses lugares
delimitados para satisfazer o desejo masculino. Inclusive, em alguns países em
que a prostituição foi legalizada, os demandantes não só acreditam ter o
direito de usar sexualmente as mulheres prostituídas, como também possuem esse
direito consagrado por lei. A cartografia global da prostituição mostra varões
dos países centrais cruzando regiões e até mesmo continentes para ter acesso a
corpos de mulheres e meninas de outras raças e culturas que só possuem o seu
corpo para sobreviver. São deslocamentos pontuais dos demandantes de
prostituição para comprar sexo barato, racializado e, muitas vezes, infantil.
A teoria feminista propôs a
necessidade de estudar a política sexual de todas as instituições para
compreender as lógicas patriarcais que habitam em seu interior. Neste sentido,
a política sexual da prostituição demonstra sociologicamente o caráter
interclassista dos demandantes e a composição feminina e sem recursos daquelas
que exercem a prostituição. A lógica patriarcal e a lógica de classe se fundem
na prostituição.
A característica mais
significativa do capitalismo avançado é sua globalização. E essa exigência
chegou à prostituição. A globalização desativa as fronteiras para o capital e
as mercadorias. E a mercadoria sobre a qual está edificada a indústria do sexo,
os corpos das mulheres, não podem permanecer dentro dos limites do
Estado-nação. Principalmente, porque essa “mercadoria” diminui nas sociedades
de bem-estar e há muitas disponíveis nos países com altas taxas de pobreza. O
que quer dizer é que a globalização da indústria do sexo exige que os corpos
das mulheres possam ser deslocados de seus países de origem e sejam
transferidos a países em que a demanda não se cobre.
O tráfico, o turismo sexual e o
negócio das esposas que são compradas por correio garantem que a severa
desigualdade das mulheres possa ser transferida para além das fronteiras
nacionais, de maneira tal que as mulheres dos países pobres possam ser
compradas com fins sexuais por homens dos países ricos. O século XX viu o fato
dos países ricos prostituírem as mulheres dos países pobres como uma forma de
colonialismo sexual.
Como afirmava no primeiro
capítulo, seguindo a análise de Saskia Sassen, uma característica fundamental
do capitalismo global é a lógica de expulsões que coloca em funcionamento para
conseguir, em pouco tempo e sem economias produtivas, alguns níveis de lucros
impensáveis. Deste ponto de vista, as mulheres prostituídas não só representam
uma das grandes expulsões do século XXI, como também são submetidas às mesmas
regras que outras mercadorias para o consumo. A prostituição é assim o máximo
expoente do deslocamento neoliberal, pois as mulheres são transferidas dos
países com altos níveis de pobreza para os países com mais bem-estar social,
para que os varões demandantes de todas as classes sociais acessem sexualmente
os corpos dessas mulheres. O corpo das mulheres prostituídas se torna uma
mercadoria muito cobiçada pelos traficantes e cafetões, porque proporciona
altos lucros com baixos custos. Esta forma de funcionamento do capitalismo, o
deslocamento da produção menos qualificada a países com poucos direitos
trabalhistas e altas taxas de pobreza, estendeu-se às mulheres prostituídas.
No entanto, esta condução de
mulheres para a indústria do sexo tem elementos que a convertem em uma
autêntica expulsão. São mulheres expulsas de sua condição de cidadã, de seus
contextos culturais, de seus ambientes familiares e de seus projetos de vida.
São expulsas de seus espaços físicos e emocionais. Quando chegam aos destinos
projetados, já são seres sem história; ninguém as conhece aqui e precisam negar
o que são lá, em seu país de origem. Pelo caminho, aprenderam a ocultar sua
história e, em muitas ocasiões, sua língua, como condição de possibilidade para
adotar a nova identidade que lhe é oferecida, a de mulher prostituída.
A prostituição, como dissemos
anteriormente, possui três marcas, sem a identificação das quais não é possível
a compreensão desta realidade social: a patriarcal, a capitalista neoliberal e
a cultural/social. Na intersecção destes três sistemas de poder cresceu a
indústria do sexo e os consumidores de prostituição aumentaram tanto como o
número de mulheres com o qual este negócio global se alimenta. No momento
atual, a estrutura que sustenta esta indústria é pilotada pelas lógicas
econômicas que governam o capitalismo global. Só isto explica os enormes
esforços que estão sendo feitos para que o acesso sexual ao corpo das mulheres
seja percebido como um assunto de consumo para os varões e de livre escolha
para as mulheres prostituídas. O imaginário coletivo, resultado em muito boa
medida das estruturas de poder patriarcais e capitalistas, oferece a imagem da
prostituição como um ato livre delas e um ato de consumo deles. Dito de outra
forma, as elites dominantes tentam fazer com que a prostituição seja vista como
um contrato livre entre duas partes que estão igualmente interessadas em
firmá-lo.
Se, como afirmamos, a
prostituição se encontra na confluência de três sistemas de poder, o
capitalista, o cultural/racial e o patriarcal, o próprio título deste capítulo
[A indústria internacional do sexo] é em si mesmo uma proposta de como esta
prática social deve ser interpretada. Com efeito, a prostituição é uma
indústria essencial para a economia capitalista, para a economia criminosa,
para os estados que veem nesta instituição uma fonte de receita pública, mas
também para instituições do capitalismo internacional, como o Banco Mundial e o
Fundo Monetário Internacional, que veem no que definem como indústria do
entretenimento e do ócio algumas receitas que podem garantir a devolução da
dívida. Poulin afirma que “o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e os
planos de ajuste estrutural propõem empréstimos aos estados para desenvolver
empresas de turismo e entretenimento”.
Fonte: Ihu
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